
Agricultora familiar e acostumada a trabalhar e conviver apenas com a família, no começo Sônia ficava “bem quietinha” nas reuniões, “só escutando tudo que falavam”. Com o ouvido ainda atento, Sônia agora tem muito o que dizer. Já viajou para reuniões e manifestações em várias cidades do Brasil, participa da Marcha Mundial das Mulheres, é diretora do Sindicato, é coordenadora do Movimento de Mulheres da Zona da Mata e Leste de Minas, e é também suplente na coordenação geral do CTA-ZM.
“Antes eu era uma pessoa que não participava de nada, que não tinha liberdade, então pessoalmente eu tive um choque de realidade muito grande quando descobri a questão da violência doméstica porque eu sofri violência a vida toda e não tinha tanta noção disso, não percebia, principalmente porque sofria violência psicológica. Agora eu tento ter uma família diferente, criar uma família com autonomia, com os filhos tendo autonomia, mas com responsabilidade e inseridos também no movimento, tanto de mulheres quanto sindicatos e outros também”, conta Sônia.
Ela conheceu o CTA-ZM participando das oficinas do GT Gênero: “As meninas do CTA sempre iam no sindicato, ajudando na organização, no planejamento. Os primeiros contatos que eu tive com elas foi em 2005”. Depois de participar de várias atividades e oficinas do CTA, Sônia se tornou diretora da organização, hoje é suplente da coordenação geral, e é também chamada para dar oficinas. A diretoria do CTA-ZM é integralmente formada por agricultores e agricultoras do movimento agroecológico da Zona da Mata mineira. Esta é uma forma de garantir a transparência da organização, além da atuação direta destes parceiros que trazem para as reuniões de diretoria as realidades dos municípios e as demandas e reivindicações das famílias agricultoras.
“Eu já ministrei curso, inclusive aqui no CTA, falando da organização das mulheres, sobre a importância de estarem participando, e eu também compartilho a nossa experiência, como a gente se organizou no município e atua até hoje. Eu acho que é muito importante participar das oficinas e das reuniões porque a gente se informa das lutas que tão acontecendo no geral. Porque quando a gente fica em casa, as informações não chegam e a gente não fica sabendo o que tá acontecendo na realidade. E é um momento da gente tá se fortalecendo também como mulheres. No Movimento de Mulheres esse é o objetivo: se fortalecer e ser companheira uma das outras pra enfrentar as lutas do dia a dia”.
Participando também do projeto das Cadernetas Agroecológicas no CTA, Sônia começou a perceber o quanto a sua horta representava para as finanças da família. Ela achava que só quem colocava dinheiro em casa era o marido, com o café, agora ela sabe que os legumes, verduras, hortaliças, além das frutas do pomar também geram economia e renda. “No início era só o café, mas depois a gente passou a vender verduras, legumes e frutas. A gente planta de tudo um pouco e vende o que não consome. Tem pomar, tem horta, tem feijão, tem milho e a gente vendia pelo PNAE e pelo PAA, mas acabou. As políticas públicas ajudaram a melhorar a nossa renda. Hoje a maior dificuldade que a gente enfrenta é a comercialização. E também a pressão pra usar veneno. A maioria das famílias vizinhas usa veneno. Eu ainda não consegui fazer o meu marido parar de usar o round up no café. Ele não joga nem no pomar, nem na horta, nem no milho e feijão. Em volta de casa ele não joga, mas joga no café”.
O veneno na plantação de café é só uma das lutas diárias que Sônia enfrenta dentro de casa. Tem também o machismo do filho mais velho, que já pediu pra companheira trocar de roupa porque estava com ciúmes, mas Sônia não deixou: “Ele sempre foi tranquilo dentro de casa, sempre ajudou nos trabalhos domésticos, agora ele casou e ajuda a companheira dele também, mas teve outro dia que me deu vontade de esganar ele porque com tudo o que você ensina, chega na hora ele vai lá e faz o contrário. Ele brigou com a mulher porque tava com ciúmes e queria que ela trocasse a roupa. Eu não deixei de jeito nenhum porque eu não criei homem pra ser machista desse jeito. Eu chamei ele no canto e falei tanta coisa. Mas eu acho que passou porque depois ela já saiu com essa roupa de novo e não teve problema”.
Sônia também precisa enfrentar os comentários de outras mulheres que não participam do Movimento e não entendem tantas viagens que ela faz. “Não é fácil porque é pressão de todos os lados, não só do marido como também de mulheres que criticam. Eu ouvi de uma mulher que era pra eu parar de sair porque senão meu filho (de 3 anos) ia morrer porque eu não tava cuidando direito dele. Um dia eu fui numa reunião em Belo Horizonte e, assim que eu cheguei, minha menina mandou mensagem dizendo que meu filho tava com febre. Eu pedi pro meu marido levar ele no hospital, fiquei o dia inteiro na reunião e à noite viajei pra casa, mas só consegui chegar em casa no outro dia. Às 5h da manhã eu tava na estrada e vi que minha filha tava online no celular, liguei e perguntei porque ela tava acordada aquela hora: ‘Eu tô acordada com o meu irmão a noite inteira porque ele tá com febre’, ela me falou. O pai não tinha levado o meu menino no médico. Quando eu cheguei fiquei o dia inteiro no hospital e depois fiquei ouvindo que não cuido do meu filho. Ninguém foi reclamar com o meu marido que não levou meu filho no hospital. A errada era eu que tava participando de uma reunião. Eu fiquei muito chateada e pensei em largar, mas voltei mais forte. Muitas mulheres deixam de participar por causa desse julgamento”.
Ela tenta levar o filho caçula em todas as reuniões que pode porque também acredita que isso é importante pra formação dele. Muitas vezes nas reuniões do movimento agroecológico, há a “ciranda”, um espaço voltado para as crianças com atividades de arte educação ambiental. Mas, em casa, se Sônia traz alguma brincadeira diferente ou se deixa o filho brincar de bonecas, é muito criticada pela família. “É um desafio cada dia, mas se for pensar nas dificuldades que as mulheres relatam, que muitas vezes não conseguem participar, eu ainda tenho é menos problema porque eu ainda consigo tentar dialogar e não aceitar o que é imposto. Quando a gente volta, muitas mulheres dizem que queriam participar, mas você consegue ver na expressão delas que tem violência em casa e elas não conseguem assumir. Porque às vezes as coisas vão se tornando tão rotineiras que elas não percebem. Porque violência não é só espancar. No município, a gente faz reuniões com as mulheres nas comunidades porque às vezes elas não tem dinheiro pra ir pra cidade, não tem com quem deixar as crianças, e aí a gente tenta fazer as reuniões em horários também que facilitam pra elas participarem. É uma maneira de ajudar elas a ter um pouco de formação. A gente tem que fazer, tem que participar. Parece que a gente faz muito pouco pela vida das mulheres, mas com esse pouco a gente modifica não só a vida da gente como das outras companheiras também. Teve muitas mulheres que morreram na luta pelas conquistas que nós tivemos como trabalhadoras, mas que nós estamos perdendo agora com esse governo. A gente tem que continuar na luta por elas, pelas que estão vivas e pelas que morreram por nossa causa. Todos estão perdendo direitos, mas as mulheres são as mais atingidas. O movimento precisa se fortalecer e lutar, ir pra rua, fazer o que for preciso pra defender os nossos direitos. Eu até pensei em me afastar no final do ano, mas eu acho que a gente não pode fazer isso porque é deixar de assumir os direitos
que você conquistou, que outras mulheres lutaram pra você conquistar e também de defender as outras mulheres, lutar por aquelas que não podem sair, que não tem condição de participar porque não se libertou ainda”.
Nos últimos anos, Sônia passou por uma transformação pessoal e hoje vive a necessidade de transformar o mundo. Como ela disse: "parece pouco, mas é nesse pouco que as coisas vão se transformando". Além de ajudar as companheiras, ela também ajuda a nora e toma conta do netinho de seis meses, para que ela possa terminar os estudos. “O povo fica me criticando: ‘Ah, você fica cuidando do filho dos outros. Ela tinha que pensar em estudar antes de fazer menino’. Por companheirismo de mulher eu tô cuidando de mais uma criança. Ela tá terminando o Ensino Médio esse ano e o que eu puder ajudar pra ela estudar, eu vou. O filho não pode ser impedimento”.
Sônia continua cuidando da terra, do quintal, da casa, do marido, dos filhos, do neto, da nora. Agricultora ela sempre foi e continua sendo, a cada dia mais consciente da sua classe e da sua luta. Mas já tem um tempo que ela deixou de ser uma “dona de casa comum”. Hoje “cuida das companheiras”, como gosta de afirmar, e luta pelos seus direitos, da sua família e das outras mulheres também.
Autora: Wanessa Marinho